Uma Conversa Sobre o Judogi Rosa

O judogi no judô é branco! Não existe judogi rosa no judô! 

O judogi azul começou a fazer parte do judô em aproximadamente 1997 para melhorar a identificação dos lutadores para árbitros e público durante eventos televisionados. 

Essa ideia surgiu em 1986, com o primeiro homem não-japonês a conseguir um título mundial em 1961, o holandês Anton Geesink, que sugeriu o uso do judogi vermelho, para ser equivalente a faixa diacrítica já utilizada. No início, a ideia foi considerada um absurdo, mas com a necessidade de público e de espectadores, depois de muita resistência, ganhou força o uso do judogi cor azul, por oferecer melhor contraste com o branco do judogi adversário e o verde do tatame na televisão.  

Hoje em dia é fácil encontrar pessoas usando o judogi azul em treinamentos e eventos menos formais, embora não seja recomendado. Mas em eventos oficiais, exames de graduação, cerimônias, eventos de kata, o judogi branco é obrigatório.

Mas onde entra o judogi rosa no judô? A resposta é simples: em lugar nenhum! Não existe no judô. 

Mas então por que é possível encontrar judogi rosa entre crianças, em alguns casos, até entre adultos, e na maioria são meninas utilizando?

A resposta também é simples: estamos em uma sociedade que precisa reforçar estereótipos de gênero para legitimar práticas esportivas, ou seja, se meninos vestem azul, as meninas vestem rosa, o judô é uma luta, e luta é coisa de menino, ao colocar rosa, autoriza a menina a praticar judô amparada por uma regra heteronormativa de que meninas vestem rosa. Entretanto, o judogi azul não foi escolhido com essa finalidade de ser coisa de menino, até porque isso é não universal, e não foi uma ideia de brasileiros.

É inegável que o número de meninas aumentou significativamente em aulas de judô infantil. Porém, ao utilizar o judogi rosa estamos reforçando que existem coisas de meninas e coisa de meninos para convencer as pessoas a fazerem judô. A mensagem que se passa é: “você que é menina pode vir para o judô sem problema de ser julgada e questionada em sua sexualidade e identidade de gênero, pois aqui você pode usar rosa!”.

Por que então permitir o Judogi rosa e não o camuflado, o vermelho ou o preto? Ou ainda, porque não se vê meninos vestindo Judogi rosa?

O ponto de discussão aqui é que não deveríamos reforçar feminilidades compulsórias heterocisnormativas através do uso da cor rosa, pois neste contexto o seu uso não é por acaso. 

O uso de diferentes cores de judogi e das faixas também pode assumir outro significado, em apoio a movimentos sociais, como o uso do rosa nas campanhas do “outubro rosa” quando se busca conscientizar mulheres a realizarem os exames preventivos contra câncer de mama, assim como o mês de conscientização do exame preventivo de câncer de próstata acontece no “novembro azul”. Não é raro encontrar judocas homens nas redes sociais vestindo o judogi rosa para dar apoio a campanha, lembrando que eles não possuem o judogi rosa, é apenas uma montagem virtual por aplicativo. Além desse movimento social, a campanha realizada pela marca Kimonos Dojo, confeccionou uma faixa simbólica chamada de “faixa arco-íris” para apoiar uma ONG de direitos LGBT+, mas não era para ser utilizada em treinos, embora tenha causado muita polêmica quando alguns sensei se manifestaram apreensivos de alguém querer usar nas aulas. O que nos mostra que o uso de cores que reforçam estereótipos de gênero pode ser usada, mas as cores que questionam este padrão não podem, tendo em vista que ameaçam as normas de gênero. 

Por outro lado, ainda é possível encontrar sensei que ameaçam castigar seus alunos com o uso de uma “faixa rosa”, que também não existe em arte marcial nenhuma, caso reclamem ou façam alguma coisa errada.  

Mas de onde surgiu essa ideia de judogi rosa? Não se sabe exatamente quem foi essa pessoa, mas é possível supor que tenha sofrido uma forte influência do jiu-jitsu, onde se pode usar diferentes cores - mesmo assim em competições de jiu-jitsu apenas o branco, azul e preto podem ser usados; somado a uma forte intenção de vender mais e de abrir um nicho de mercado, pois as dimensões do judogi do judô são diferentes das vestimentas do jiu-jitsu. Por isso quem criou o judogi rosa, pensou na especificidade do judô, para além do que é permitido nas demais artes marciais.

E funcionou! Mas a reboque feriu os princípios, história e tradições do judô! 

Basta lembrar que em 1999 quando a Federação Internacional de Judô (FIJ) extinguiu a listra branca na faixa preta das mulheres em competição, a discussão era justamente pelo sexismo que ela representava, tendo em vista que a listra branca representava que ela nunca sairia da faixa branca e por passar no meio da faixa representava a metade do que seria um homem faixa preta. A própria federação japonesa de judô demorou ainda quase 20 anos para ter a mesma atitude da FIJ. Ao permitir o judogi rosa, estamos relativizando a luta de décadas pela equidade entre mulheres e homens no judô. Foram 44 anos entre a criação do judô para homens, em 1882 e para mulheres na Kodokan Joshibu, em 1926, e mais 54 anos até que elas pudessem ter seu próprio campeonato mundial, em 1980; e bastou um mercado defasado para resgatar um símbolo que reforça estereótipos de gênero. Hoje em dia é opcional, mas mulheres ainda usam a listra branca por uma questão de tradição, outras porque acreditam que isso representa a luta até chegar aonde chegamos, mas homens não podem usar a listra branca na faixa, isso é apenas para as mulheres. 

Não se trata de gosto pelas cores, até porque meninas podem não gostar de rosa e meninos podem gostar de rosa, a questão é a intencionalidade da inserção de cores que vão representar as relações de gênero para legitimar a prática de mulheres em esportes hegemonicamente masculinos. Acontece o mesmo com as luvas de boxe, de muay thai, pranchas de surf, skate, bolas de futebol, todas rosas, e às vezes com temática de princesas. Basta colocar a cor rosa e as meninas começam a se sentir mais bem vindas à prática, reforçado pelo mercado. 

É rentável perpetuar o modelo patriarcal. Mas o uso da cor rosa neste contexto, não ajuda nem na busca pela equidade, nem na luta pela normatização das diferenças, negando o direito das diferentes feminilidades. O judô é para qualquer pessoa independente de performances de feminilidades e masculinidades.

O judogi rosa está entre nós, e agora? O que podemos fazer?

Agora é a hora (já passou da hora) de problematizarmos. Não temos mais condições de impedir que uma pessoa faça judô por ter ganho ou equivocadamente comprado um judogi rosa para o judô. De igual forma, muitas vezes, permitimos que nas primeiras aulas se faça até mesmo sem judogi, ou com um casaco moletom. Projetos sociais ganham judogi’s usados, que muitas vezes são doados de outras artes marciais, como negar? Não tem como.

Ao sensei cabe problematizar o uso do judogi rosa como uma forma de desconstruir a ideia dos estereótipos através da história do judô, indo muito além do que é tradicionalmente correto no judogi branco. 

A pergunta: “por que não podemos usar judogi rosa no judô?”, não é a mesma coisa que perguntar: “Por que temos que usar judogi branco no judô?”. As respostas são completamente diferentes e seus conceitos por si só, já são duas aulas de judô. 

Com isso, sugerimos abaixo algumas alternativas para você desenvolver nas suas aulas, quando for possível:

- Seja um exemplo e use apenas judogi branco para dar suas aulas.

- Além de explicar por que o judogi é branco, conte a história do judô feminino desde sua origem, incluindo a história da listra branca na faixa preta; 

- Fale sobre violências de gênero; estereótipos de gênero; respeito à diversidade; assédios e abusos; dentre outros que possam ser mais específicos da sua região, academia, agremiação;

- Quando forem crianças pequenas que já entrarem com judogi rosa, e possivelmente os perderão em um ano, instrua que o próximo judogi seja branco;

- Não ofereça o judogi rosa para crianças que estão entrando no judô;

- Caso não se sinta à vontade para falar sobre o assunto chame alguém de sua confiança para uma palestra, gravar um vídeo, ou qualquer coisa que não deixe passar em branco esse debate;

- O ideal seria que as federações não permitissem nem judogi rosa, nem azul em eventos infantis, mas sabemos que o mercado fala mais alto nestas horas e ninguém quer perder judoquinhas, mas não se omita de problematizar as cores dos judogi, acredite que isso pode ajudar a combater diferentes formas de preconceitos na sociedade, não apenas no seu dojo.

O judô não forma apenas judocas, mas pessoas conscientes do exercício da cidadania.



APOIO:

@Seikatsukandojo